Em encontros de estudos bíblicos nos quais tenho
participado, por vezes tenho ouvido questionamentos sobre a fé. Não apenas
entre jovens, mas também entre pessoas experimentadas na tradição cristã,
pode-se ouvir com certa frequência algo assim: “Como pode ser a fé um presente
de Deus? Ou eu tenho fé, ou eu não tenho. É o homem quem decide ter ou não ter
fé...”. É notável como tal postura contrasta fortemente com a explicação que
Lutero deu ao terceiro artigo do Credo Apostólico em seu Catecismo Menor: “creio
que, por minha própria inteligência ou capacidade, não posso crer em Jesus
Cristo, meu Senhor, nem chegar a ele.”
Essa é uma questão que imagino ser recorrente. Também levei bastante
tempo para reconhecer que a fé é um
presente de Deus, e provém exclusivamente Dele. Não é de se estranhar a dificuldade
de compreender isso. O homem crê-se autossuficiente, imagina-se em condições de
criar a fé em si mesmo e nos outros. Reconhecer a fé como obra exclusiva do
Espírito de Deus no homem (e não como obra do próprio homem) é uma derrota
difícil de engolir.
Sei que existe uma intensa disputa teológica entre luteranos,
calvinistas e arminianos sobre como a fé opera nas pessoas, e se elas podem
resistir (ou não) à fé ofertada por Deus. E não tenho a menor pretensão de
resolver esse intrincado problema teológico que dura séculos. Mas o que sei é
que quando Deus bate à nossa porta e nos chama pelo nome, ofertando-nos
reconciliação para com Ele, não conseguimos ficar neutros: ou abrimos a porta e
permitimos que Ele entre, ou então não abrimos a porta (o que equivale a
rejeitá-Lo).
Vou tentar um exemplo. Suponha que alguém construiu uma casa e que a
ofereceu como um presente para outra pessoa. Trata-se de uma doação. De duas
uma: ou o donatário aceitará a casa (ou seja, receberá a doação, o presente),
ou a rejeitará (e acreditem, já presenciei isso acontecer muitas vezes, por
orgulho, desconfiança, ou outros sentimentos assim!).
Pergunto: quem é o grandioso? Quem é o magnânimo? Aquele que
ofereceu a casa, ou quem a recebeu? A pessoa que deu o presente, ou aquela que
o aceitou? O bem foi praticado por quem? Por aquele que disse “sim, eu quero o
presente”, ou pelo doador? Não soaria estranho o donatário afirmar que o mérito
pelo bem que recebeu é dele? “Ora, fui eu quem disse sim, mereci a casa portanto...”. Se não fosse o doador, o donatário
poderia gritar milhões de “sim”, mas a casa não viria, porque a existência da
casa não depende dele, donatário, mas do doador, que a construiu. O donatário
não teria aquela casa se o doador não a tivesse construído e não a quisesse doar.
Semelhante é a condição do homem diante do grande presente que só
Deus pode dar: a fé em Jesus Cristo. Quando Deus, por meio de seu Espírito
Santo, se apresenta diante de cada um de nós oferecendo-nos a Fé gratuitamente
(e Ele o faz constantemente, pela palavra bíblica e pelos sacramentos), estaremos
em posição semelhante à daquela pessoa para quem a casa foi ofertada em doação:
vamos aceitá-la ou recusá-la.
Sei que o exemplo da casa não retrata a grandiosidade do amor de
Deus. Aliás, nenhum exemplo criado pelo homem será capaz disso, já que o amor
de Deus “excede todo o entendimento” (Efésios, 3.19). Mas talvez ele tenha ajudado
alguns de nós a compreender melhor o fato de que todo o esforço do homem na
busca de Deus é em vão se ele não reconhecer primeiro que a Fé que o “sim” dele
aceita não provém dele, homem, mas exclusivamente de Deus.
Há homens que aceitam a Fé em Jesus
Cristo e fazem-no reconhecendo sua completa impotência e incapacidade para, por
esforço próprio, terem fé na obra salvífica da encarnação, morte e ressurreição
de Jesus Cristo. Tais pessoas compreendem que sua salvação não depende delas, e
que nada podem fazer para serem salvas. Percebem que a razão e orgulho humanos
não são capazes de conviver com a ideia de que o homem foi salvo por alguém que
morreu pregado numa cruz. Aos olhos do mundo, ao juízo do Adão, é absolutamente
humilhante ao homem reconhecer-se fraco, impotente. Aos olhos de Deus, é nesse
ponto que se revelará a verdadeira Fé. Fé que anula a carne e faz nascer o
espírito! Aquele que se entrega à cruz de Cristo pela fé está a padecer tal
qual Cristo padeceu. Mas será glorificado tal qual Cristo o foi (Romanos 8.17).
Há outros homens que aceitam a Fé dizendo coisas como “aceito-te
como meu senhor e salvador”. Mas continuam achando que foram eles quem
“decidiram ter fé”. Não conseguem perceber que foi Deus quem primeiro lhes
ofertou a fé. Não conseguem admitir que nenhum mérito há em simplesmente dizer “sim”.
Este sim não cria a fé. A “fé aceita” desse modo é orgulhosa, pois se sustenta
na presunção (tipicamente humana) de que nossas razões, decisões e atitudes
podem salvar-nos e “garantir-nos” a vida eterna. É a fé do velho Adão que não
se entrega, que não admite ser incapaz de se salvar por esforço próprio. É a fé
da carne que não se anula, não “morre na cruz”.
Há ainda homens que negociam sua fé. Algo como alguém que diz: “para
morar naquela casa sou obrigado a humilhar-me e aceitar a doação daquele homem?
Então que seja assim”. Como que pretendem “preencher uma condição” para serem
salvos. Aceitam a Fé para serem salvos, e não porque reconheceram sua
insignificância e incapacidade. Ou, ainda pior, acham que após “preencherem”
esta condição, estão no direito de exigir que Deus faça o que eles quiserem!
Algo como: “Pronto, te aceitei como meu senhor e salvador! Agora, dê-me isso e
aquilo. Faça assim e assado, aqui e agora, rápido”. É um toma-lá-dá-cá: “eu te dou minha fé e tu
me dás a salvação, ok?” Como se Deus precisasse “negociar” conosco. Como se
estivéssemos fazendo um “favor” para Deus ao aceitar a Fé que Ele nos dá por
meio de seu Espírito Santo. A Fé se torna um item sujeito a escambo: é ofertada
pelo homem a quem lhe dá mais. O padrão de comportamento “aceita-me e dar-te-ei
tal coisa” é próprio de Satanás, não de Deus. Basta pensar nas tentações que
Jesus passou no deserto para entender isso. Ali está Satanás, negociando bens
terrenos em troca da tão desejada adoração (Lucas 4.5-8; Mateus 4.8-10). Deus
não quer nada em troca pela salvação que gratuitamente oferece por meio da Fé
em Jesus Cristo. Até porque o homem não possui nada e não tem nenhuma
característica que possa torná-lo agradável aos olhos de Deus. Deus salva homens
porque Ele os ama, e não porque sejam valorosos ou porque possuam algo que Lhe
interesse.
Caro leitor: reconheçamos que a fé não provém de nós, mas de Deus.
Não aceitemos que nos vendam o que Deus gratuitamente nos ofertou. E não
exijamos nada em troca: a vida eterna no reino de Deus é promessa já feita, e
será cumprida tal como foi a ressurreição de Jesus. Não há casa maior que a de
Deus na Eternidade. É lá que Deus quer nos receber, acolher e abrigar.